terça-feira, 5 de junho de 2012

Sonho

Esse texto foi escrito para uma "brincadeira" entre mim e alguns amigos. Cada um deveria fazer algo "artístico" com o tema "sonho" - um texto, um poema, um desenho, uma música. O meu é esse, acho que eu fugi um pouco do tema - como quase sempre.
A música que eu cito no texto só direi no final da publicação (que diferença faz? é só abaixar até lá haha).

Sonho (Ricardo Braga)


"Daí a função de uma arte aberta como metáfora epistemológica: num mundo em que a descontinuidade dos fenômenos pôs em crise a possibilidade de uma imagem unitária e definitiva, esta sugere um modo de ver aquilo que se vive, e vendo-o, aceitá-lo, integrá-lo em nossa sensibilidade". ECO, Umberto. Obra Aberta.


A cor acre e suja que toma conta da visão se torna em pouco tempo a nossa única palheta de cores. Todo entendimento se dá em cima dessa sutil violência, da secura que cobre o corpo e do rachar contínuo dos lábios, da poeira que sufoca a fala e apedreja as lágrimas. O barulho dos ratos é ensurdecedor, irritante, e em alguma medida natural, quase como o vento que corre do lado de fora da pequena janela acima dos meus sonhos.

O som do orvalho é a sua única manifestação à qual tenho acesso, não me chega nem a sua umidade nem a sua transparência. A violência é a única estética possível, vista nos sangues secos espalhados pelos corredores, no cheiro de urina, no vapor das carnes prestes a morrer, e, principalmente, no som grotesco da solidão. Os gritos são uma sinfonia de belas notas desarrumadas, desafinadas, horrorizadas. O sol se apaga somente às 22 horas, e se levantará quando for ordenado. Felicidade é entorpecimento, ou serão as pílulas o esquecimento? Meu andar fraqueja cada vez que me sento, e já quase não me levanto... Meus braços se perderam em meio aos quadris. O calor é insuportável, mas mantém a circulação.

Em algum canto disforme escuto:
'Sleep, my friend, and you will see,
That dream is my reality'.

E talvez o que vejo não seja sonho, ou talvez o que sonhe não seja desejo. Mas o que sinto é real. A minha própria violência, o meu próprio ódio exalado no cheiro anêmico das minhas roupas, na contenção dos meus instintos, na repulsa do meu próprio sexo. O estranho esquecimento do meu próprio corpo.

Tento, mas não sei se consigo, enlaçar meus dedos nas minhas costas e me envolver num maternal surgimento de mim em mim mesmo. Mas não sei se consigo pois não sinto meus dedos, ou se os sinto não os reconheço, são distantes demais, são qualquer outra coisa que já não sou mais.

Acho que não importa mais, pois já não me chamam por meu nome ou pelo o que fui. Apenas Sonho.


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A música é Welcome Home (Sanitarium), do Metallica. Ouçam, vale a pena.

Particularmente acho a relação da citação inicial com o resto do texto incrivelmente irônica e até cínica haha.