quinta-feira, 29 de novembro de 2012

A Morte do Beija-Flor

Escrevi esse texto já tem algum tempo, talvez 3/4 meses. Passando por um período conturbado eu o escrevi, e, como verão, estava lendo Clarice Lispector na época (A paixão segundo G.H.) e acabei copiando um pouco esse estilo dela de escrever (não que eu já não me espelhasse nela antes). Bem, espero que gostem, ele não é difícil, mas talvez alguns achem chato. Se quiserem eu posso fazer uma publicação depois "explicando" o texto.

É isso, espero que gostem. Deixem comentários (mesmo se for para falar que não gostaram).


A morte do Beija-flor.

Quando somos crianças temos a completa noção de que entendemos absolutamente tudo. É fácil resolver os problemas que surgem e as diferenças - quase sempre com um par-ou-ímpar. Porém, apenas uma coisa não fazia sentido. Os adultos.
Adultos se estressam por tudo, gritam com quem não conhecem e às vezes mesmo com quem mais gostam! Bebem coisas nojentas e amargas, fumam longos canudos malcheirosos, usam palavras fúteis, frases longas e complexas orações subordinadas. Parecem-se muito com as crianças, mas se ofendem quando ouvem a comparação. As crianças, por mais estranho que pareça, queriam ser adultas ao mesmo tempo em que eram crianças, porém estas ainda têm em si todo o conhecimento, todo o sono, toda a disposição e um senso de justiça aguçado que às vezes não compreende a misericórdia, no entanto tudo entendem da solidariedade, especialmente com outras crianças.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Eu sinto

Esse é um daqueles poemas que a gente não sabe quando escreveu. Meu computador diz que foi em Maio, mas vai saber, às vezes estava em um caderno a bem mais tempo que isso!
Mas aí vai. Um poema depois de tanto tempo sem postar nada!

eu sei (Ricardo Braga)

eu sei
que sinto a sua falta agora,
porque talvez seja a única coisa
que eu sinta.
eu vejo
que meus olhos não enxergam sem você,
porque não posso saber de cores
que não tenha visto no teu corpo.

eu creio
que não respire de modo algum,
pois não sinto no ar fragrância alguma.
não sinto o toque das árvores,
nem a garoa que escorre no meu rosto,
nem mesmo o solo no qual pensava em flutuar,
sem antes sentir teu corpo e tua pele em mim.

não sei se o dia hoje está frio.
minha janela permanece fechada
desde que você saiu.
não sei se há sol,
e definitivamente não o sei,
porque não sinto nenhuma forma de calor,
nenhuma forma de vida.

desprezível é o ar que respiro,
sujo e imundo, tal qual a sensação
no meu corpo. não existe respeito
e aonde passo só são ruídos.
angustia-me não ver a sua sombra,
ou a luz refletida nas tuas pernas.
mas por quê? o tempo só teima em passar com você...

terça-feira, 5 de junho de 2012

Sonho

Esse texto foi escrito para uma "brincadeira" entre mim e alguns amigos. Cada um deveria fazer algo "artístico" com o tema "sonho" - um texto, um poema, um desenho, uma música. O meu é esse, acho que eu fugi um pouco do tema - como quase sempre.
A música que eu cito no texto só direi no final da publicação (que diferença faz? é só abaixar até lá haha).

Sonho (Ricardo Braga)


"Daí a função de uma arte aberta como metáfora epistemológica: num mundo em que a descontinuidade dos fenômenos pôs em crise a possibilidade de uma imagem unitária e definitiva, esta sugere um modo de ver aquilo que se vive, e vendo-o, aceitá-lo, integrá-lo em nossa sensibilidade". ECO, Umberto. Obra Aberta.


A cor acre e suja que toma conta da visão se torna em pouco tempo a nossa única palheta de cores. Todo entendimento se dá em cima dessa sutil violência, da secura que cobre o corpo e do rachar contínuo dos lábios, da poeira que sufoca a fala e apedreja as lágrimas. O barulho dos ratos é ensurdecedor, irritante, e em alguma medida natural, quase como o vento que corre do lado de fora da pequena janela acima dos meus sonhos.

O som do orvalho é a sua única manifestação à qual tenho acesso, não me chega nem a sua umidade nem a sua transparência. A violência é a única estética possível, vista nos sangues secos espalhados pelos corredores, no cheiro de urina, no vapor das carnes prestes a morrer, e, principalmente, no som grotesco da solidão. Os gritos são uma sinfonia de belas notas desarrumadas, desafinadas, horrorizadas. O sol se apaga somente às 22 horas, e se levantará quando for ordenado. Felicidade é entorpecimento, ou serão as pílulas o esquecimento? Meu andar fraqueja cada vez que me sento, e já quase não me levanto... Meus braços se perderam em meio aos quadris. O calor é insuportável, mas mantém a circulação.

Em algum canto disforme escuto:
'Sleep, my friend, and you will see,
That dream is my reality'.

E talvez o que vejo não seja sonho, ou talvez o que sonhe não seja desejo. Mas o que sinto é real. A minha própria violência, o meu próprio ódio exalado no cheiro anêmico das minhas roupas, na contenção dos meus instintos, na repulsa do meu próprio sexo. O estranho esquecimento do meu próprio corpo.

Tento, mas não sei se consigo, enlaçar meus dedos nas minhas costas e me envolver num maternal surgimento de mim em mim mesmo. Mas não sei se consigo pois não sinto meus dedos, ou se os sinto não os reconheço, são distantes demais, são qualquer outra coisa que já não sou mais.

Acho que não importa mais, pois já não me chamam por meu nome ou pelo o que fui. Apenas Sonho.


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A música é Welcome Home (Sanitarium), do Metallica. Ouçam, vale a pena.

Particularmente acho a relação da citação inicial com o resto do texto incrivelmente irônica e até cínica haha.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Ouro de tolo.

 Nada faz menos sentido do que a imposição da autoridade. A morte da razão e da fé está dada, os homens são incapazes de saborear a própria existência. Os sons que escuto na minha janela são imperceptíveis, são quase grotescos, na verdade. É aterrorizante sair na rua e escutar o tumulto e o caos que a ordem trouxe. As vozes expressam o medo, a fala rápida, as gírias, os monossílabos, o esclarecimento pervertido. Já não posso falar em Amor, pois este nasce rápido, e nascendo já formado seu único caminho é a morte, uma morte podre e pútrida, sem sentido. A abstração é um mal que não se pode mais explicar. Todos os homens abstraíram a sua própria vontade, são coagidos a acreditar que são livres. Estrangulam-nos por não crermos na liberdade. Minha razão está pervertida, todo o meu corpo foi imaculado, violado por ideias que queria me negar, que querem me julgar e subjugar a morrer pelo que não sou. Pior. Querem que eu viva, que seja o que não sou, o que não posso jamais ser sem antes morrer.
 Foi-me negada a existência fora de mim.

domingo, 13 de maio de 2012

Sete horas da manhã

Poema escrito numa daquelas dolorosas aulas às sete da manhã.

Sete horas da manhã (Ricardo José)

Só o sol das sete horas me salva.
Apenas ele me reglorifica,
calmo e sereno, luz quase transparente.
Apenas às sete horas a salvação é possível.

Um mundo que mata às sete horas
não merece as flores que crescem.
Que crescem certamente nos esgotos,
nos corpos dos teus filhos mortos em dor.

O sol reluz na pele das tuas filhas
sem-nome, que se esfregam na sujeira
da noite, afogadas em lama,
de horror e lágrimas.

Às sete horas a sujeira parece crime,
parece crime morrer de desgosto.
Parece vil a luz do sol que nasce,
pois se ela não salva, mostra.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Borboletas

Muito tempo sem postar, tempo até demais...
Sei que é terrível fazer isso, mas estou postando aqui um 'poema' (não sei ao certo o que é, haha) que escrevi a mais de um ano! (estou ficando velho!!) Mas do qual me lembrei nesse final de semana, pois eu realmente me afeiçoei e muito a ele. Não acho que seja o melhor (e nem sei qual é, ou se tem), mas é um dos que eu mais gosto. Espero que também gostem.

Borboletas (Ricardo José)


Não sei se quero acordar,
E ver que ainda choras calada.
Não quero que do amor
Nasça o sofrimento.

As borboletas ainda voam no jardim,
Descoordenadas, zonzas, alegres ...
A névoa da tarde emudece
O grito do sol ...

Seu pranto ainda recai no meu peito,
Morto por dentro, permaneço calado.
Sua mão de encontro a minha,
Ainda fria, inerte, viva e distante.

Calo-me numa necessidade de ouvir tua voz.
Vejo o céu e não encontro o sol,
Não encontro certeza, só o horizonte
Longe e inalcançável.

As borboletas são livres, não encontro dor em seus movimentos.
Eu choro, elas voam. Eu morro, elas voam. Queria voar, ver o mundo,
Te trazer de cada canto a beleza e a simplicidade da alegria.
Queria te dizer o que penso, o que sinto, mas sou fraco.
Se meu amor não te curar, desista, meu amor, desista pois sou fraco.
Desista de mim, largue-me, esqueça-me em um canto e viva
Para sempre longe de minha fraqueza.
Mas eu viverei sempre pensando em ti, pois sou fraco, burro,
Estúpido. Sou um romântico incompetente que só viveu para amar,
E amou errado ...

Da janela do meu quarto tímido ainda vejo as borboletas, elas dançam e se esquivam da chuva. Elas sorriem misteriosamente. Suas cores inexatas me remetem à você. O balançar de suas asas me remetem à você. A inocência, o desejo, o gracejo, tudo que olho é você. Me apaixonei, não quis, mas aconteceu, que seja, que eu ame ... Mas que tu sejas feliz ....
E por que choras, amor?

Por que eu choro?
As borboletas morrem ...

domingo, 4 de março de 2012

Picnic (Caetano Veloso)

  Esta é a coluna do Caetano Veloso no jornal O Globo, na seção O Segundo Caderno (edição de 04/03/2012). Ele fala sobre o acordo ortográfico e a pretensa facilitação da língua. Como praticamente tudo o que sai do Caetano Veloso este texto é também muito bom.


"Picnic - Caetano Veloso

Ao ouvir a conversa que surgiu, durante o ensaio do show de Gal, sobre a nomeação de Marcelo Crivella para o Ministério da Pesca (e a história de que o senador evangélico teria respondido à pergunta de um repórter sobre seus conhecimentos a respeito do assunto com a frase "Não sei nem colocar uma isca no anzol"), o guitarrista Pedro Baby, ainda levantando o tronco e a cabeça do semicírculo de pedais que se dispõe à sua frente, comentou (ele viveu alguns anos nos Estados Unidos): "Puxa vida, Ministério da Pesca!, daqui a pouco vai ter o Ministério do Piquenique." O número de ministérios é enorme e só fez crescer na era Lula. Tem que agraciar muitos partidos e muitos grupos de pressão (dizem que Crivella entra para atrair eleitores evangélicos para o candidato do PT, portanto do Governo Federal, à prefeitura de São Paulo, já que Serra decidiu dizer mais uma vez que se se eleger não deixará o cargo para tentar de novo a presidência?). Quem pode acreditar em quem quer que esteja em qualquer dos lugares dessa dança? Um pique-nique contra a legalização do aborto e o reconhecimento do casamento gay. Piquenique ou picnic? Como é mesmo que o acordo nos aconselharia a grafar essa palavra inglesa (ou alemã?) há século consagrada pelo uso?

Esse acordo é uma maluquice. Quero dizer, é outra maluquice. É mais uma maluquice. O que foi mesmo que houve nos anos 1970? Não me lembro de ouvir a palavra "acordo" (que ainda se escrevia "acôrdo", para distinguir da primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo acordar). Mas o fato é que o CD "Nego", concebido por Carlos Rennó, ficou com esse título que remete mais ao samba-canção que primeiro fez furor na voz de Nelson Gonçalves e, depois, na de Maria Bethânia do que à palavra que poderia corresponder ao "nigger" americano, se este não fosse um xingamento. Até os anos 1970, escrevia-se "nêgo", quando se queria designar alguém de pele escura, ou dengar um amigo ou namorado querido, ou ser simpático com o vendedor da loja, ou simplesmente referir-se ao ser humano em geral. Aliás, nesta última acepção é que ouvi essa palavra pronunciada hoje, pelo mesmo Pedro, quando, ao reportar uma combinação que tinha feito com todos os membros de sua família, disse que "nego acatou logo". "Nego" é "geral", é "todo mundo" (que perdeu o "o", o artigo definido que tinha herdado da origem francesa da expressão, também depois dos anos 1960, acho, embora eu próprio quando escrevi um livro nos anos 1990 ainda teimasse em manter o artigo). Nego é a família de Pedro.

Também o livro "Um defeito de cor", cujas 925 páginas li sempre com algum interesse, ostenta um título à primeira vista estranho na capa: alguém decorou um defeito e o repete sem precisar consultar o teleprompter? Não, seu velho, "cor" é "côr". Faz décadas que alguém decidiu, neguinho decidiu, um grupo de pessoas decidiu (quem, afinal, foi a esse piquenique?) que seria mais fácil para os estudantes brasileiros e estrangeiros que os acentos diferenciais dançassem. Por falar nisso: por que Guimarães Rosa escreve "dansar" em ao menos uma das histórias (estórias) de "Sagarana" (ou será "Corpo de baile")? E "dôido" em todo o "Grande sertão"? "Dôido"? Nem nos anos 1950 eu aprendi isso. Diferençava-se "doido" (que já começa com um ditongo que automaticamente confere som fechado ao "o", além de assegurar a tonicidade da sílaba - que aliás independe disso, já que um dissílabo não acentuado e não terminando em "i", "u" ou ditongo é automaticamente paroxítono - fazendo duas vezes desnecessário o recurso ao acento circunflexo) de "doído", como até hoje se faz. Nada mais. Mistérios. Escrever é muito perigoso. Esse circunflexo de Rosa deve ter motivações esotéricas, numerológicas, ocultas. É um caso extremo e anômalo. Mas o de, por melhor exemplo, "fôra" até hoje me faz falta. Muitas vezes inicio a leitura de um parágrafo de romance e paro na palavra "fora", indeciso se seu "o" foi pensado para se pronunciar aberto (e, portanto, indicar que não é dentro) ou fechado (dando à palavra o sentido de mais-que-perfeito do verbo ir - ou ser!). De modo que sempre tenho de recomeçar a leitura depois que, lendo o resto da frase, me asseguro de tratar-se de uma ou outra pronúncia. Imagino que teria um problema se estivesse lendo o texto pela primeira vez e em voz alta para um grupo, num piquenique.

Mas será que a finalidade é de fato facilitar o uso da língua escrita? E é seguro que a ausência de acentos a torna mais fácil? A facilidade é uma virtude para uma língua? Ouço muitos malucos brasileiros dizerem que "o português é uma língua muito difícil". De onde vem essa ideia? Do Ministério da Pesca?

Sempre se dá o exemplo da facilidade gramatical do inglês. Acho inglês uma língua de outro planeta. Ela é polida ou desgastada pelo tempo, uso e convergência de vários povos numa ilha afortunada, como um seixo. Não tem essas redundâncias de o plural ter que se reafirmar em cada palavra da sentença, não tem propriamente conjugação verbal, não tem esse desperdício de masculino e feminino pra tudo. Mas ouvi aquele discurso contra o preconceito linguístico nos Estados Unidos no filme "12 homens e uma sentença". Em "Picnic" temos aqueles peitos incríveis de Kim Novak. Agora aqui é "para" em vez de "pára". Como posso parar? As maluquices proliferam ao redor, só tenho uma cabeça. Ou talvez só tenha quatro, como diz Mautner."

FONTE: O GLOBO/SEGUNDO CADERNO

sábado, 25 de fevereiro de 2012

O Emprego

  Nessa segunda postagem estou tentando manter a linha de  textos novos. Escrevi esse ontem, acho que ficou melhor que o anterior, porém está longo, espero que tenham paciência para ler e que gostem, quem quiser pode comentar livremente.

O Emprego  (Ricardo José)


Alguém devia ter falado muito bem de Pedro, pois naquela tediosa manhã de segunda ele havia sido empregado.
Pedro era um rapaz de vinte e poucos anos, magro e alto. Cabelo preto e um pouco crespo. As feições do rosto finas e um nariz em dissonância, levemente grande. Com uma inteligência mediana, mas supervalorizada em meio ao silêncio de sua voz e paciência de seus gestos. Uma personalidade quase preguiçosa, uma calmaria que beira a inércia e falta de vontade frente às responsabilidades inúteis para alguém de vinte e poucos anos.
Pedro era um estudante típico, tinha amor pelo que fazia ao mesmo tempo que tinha raiva pelo que ainda não sabia, com um estranho desejo de pôr em prática tudo aquilo que aprendera, porém quando? Bem, pelo que tudo indicava seria naquela prometida segunda-feira. Vestiu sua melhor roupa, uma calça jeans escura, uma camisa social de cor clara (mas não tanto) e um tênis baixo e escuro. As cores se iluminavam aos seus olhos e ele todo exalava confiança. Já começava a ver um futuro promissor.
Durante o caminho apenas pensava no que diria quando chegasse lá, queria passar uma boa impressão obviamente, mas não queria parecer prepotente. Sorria com satisfação dentro do ônibus a caminho do trabalho - dizia assim, com todas as palavras - todas aquelas proposições filosóficas que aprendera na faculdade, aquele pensamente crítico e aquela desejosa insatisfação. A sua irracionalidade brotava em êxtase de todo o seu corpo. Ele achava estranho chamar-se assim, 'irracional', mas a satisfação era enorme, pensar que ele mesmo não fazia sentido, eram engraçadas as palavras daquele francês, eram de um significado, de uma vivacidade!
Pois que já no elevador era tratado por senhor, e o seu ego inflava, não havia motivo para se segurar, estava nos céus. O diretor geral olhou para ele, sentia que eram quase iguais, se não fosse a idade.
- Bem vindo, Pedro. Seu currículo é muito bom para alguém tão novo. Estou impressionado - o diretor falou, ainda sentado, sem muita vontade.
- Muito obrigado, senhor! - Pedro não conseguia conter a animação. Estou muito feliz de poder trabalhar aqui.
- Que bom, pois aqui você vai fazer muito disso - a animação de Pedro não lhe permitiu ver a ironia. Vamos, a secretária vai te mostrar a sua mesa e te dar o seu primeiro trabalho. Quando terminar traga-o aqui, quero ver o que você sabe mesmo.
A secretária, uma moça um pouco mais velha que ele, de estatura baixa, tinha um sorriso convidativo, mas olhos comoventes e envelhecidos, cansados. Mostrou-lhe o seu cubículo e deu umas pastas para Pedro.
- Esse é o seu computador, acho que está tudo aí - disse ela. Você terá que analisar os dados dessas pessoas e ordená-las em 'potenciais', 'possíveis' e 'arriscados'. Apenas queremos saber se vale a pena ter eles como clientes - ela esperou a confirmação de Pedro e foi embora.
As mãos de Pedro quase tremiam de animação. Ele abriu a primeira pasta e leu:

'Ricardo J. B. Antunes. B-25.240.120.50-U
Situação: Desempregado.
Valor: R$ 3.000,00.
Casado: Sim. Filhos: Sim.
Grau: C- (80%) Alto risco.'

Pedro releu umas duas vezes. Era apenas aquilo? Alguns dados 'pessoais', o valor desejado, um número e só? Aquilo não podia estar certo. Com certeza ele teria algum motivo para estar ali, talvez precisasse com urgência daquele dinheiro, e aquela quantidade nem era tão alta assim. Com a taxa de juros, em dois anos eles ganhariam mais da metade da quantia, sem nem terem sido reembolsados! Não era possível, nem uma foto, nem uma entrevista havia sido feita. 'Talvez seja apenas esse, afinal de contas o risco é de 80%...' pensava Pedro. Seguiu adiante com o trabalho. Na segunda pasta a mesma surpresa, um nome abreviado, uma identificação numérica, uns valores e o risco tomando a maior parte do espaço. Continuou o trabalho um pouco incomodado. Após uma hora voltou para o diretor.
- Com licença, Sr. Carlos, terminei o serviço, aqui...
- Ora, finalmente, nos próximos tente ser mais rápido - cortou o diretor com uma voz grave mas com um ar de jocosa paternidade. Isso aqui é bem fácil, é só olhar e classificar, sem mistério algum. Qualquer dúvida é só consultar o número no sistema.
- Sr. Carlos, eu tive uma pequena dúvida apenas.
- Diga, diga - o diretor ainda olhava as pastas.
- Por que há tão poucos dados sobre os clientes, eu nem sequer sei quem são. Nem uma foto tem - falou ainda receoso.
- Mas você não precisa de mais nada, isso é gastar tempo a toa, papel, tinta e dinheiro. Os números estão aí, o computador já calcula o risco de todos os clientes, nós botamos todas as variáveis importantes no sistema e ele contabiliza tudo. Pronto, sem erro, sem perda de tempo.
- Mas e o contato humano? Quero dizer, é claro, precisamos cortar gastos sempre, entendo isso mas, essa decisão pode mudar a vida de uma pessoa - Pedro se sentia um pouco mal de falar tudo aquilo ainda no primeiro dia.
- Ah, garoto, você ainda tem muito o que aprender aqui, mas está indo no caminho certo. O computador não erra, os cálculos não erram nunca. Por ser essa decisão tão importante assim é que deixamos a máquina fazê-la. Confie nela e no nosso raciocínio e você verá como as coisas são simples. Todos esses dados têm um sentido e são cruciais para a decisão. Você pode pensar 'poxa, mas esse aqui está desempregado, tem família, podíamos dar o dinheiro a ele'. É claro que nós podíamos, mas quem garante que ele nos pagará de volta, ein? Se ele não paga, temos que processá-lo, e lá se vai dinheiro com advogado e tudo o mais. Olha a perda de tempo e dinheiro, até mesmo para o pobre coitado. É mais fácil economizar isso tudo. Não se questione tanto, confie no raciocínio.
- O.K., Sr. O Sr. tem razão, é o melhor - Pedro disse um pouco conflitante consigo mesmo, mas o diretor estava naquele cargo a um bom tempo e era bem reconhecido, ele com certeza sabia o que fazia.
Sentado nos seus 2x2 metros de espaço Pedro ia aos poucos pensando em como haviam sido bobas as suas perguntas, resolveu prestar mais atenção ao que fazia e, na dúvida, consultar o computador e os cálculos, sempre.
Enquanto isso, Rogério, melhor amigo de Pedro na faculdade ia pensando em como era engraçada aquela esquizofrenia em que vivíamos, em plena aceitação do que sempre foi, mesmo que seja contra o que pensávamos. Por que sempre aceitamos tudo como se fosse normal, natural? E pior, vamos cada vez mais soterrando nossos pensamentos numa culpa, que nós mesmo criamos - ora, veja bem - por não pensarmos igual ao que - dizem - deveríamos pensar. Achamos que não nos encaixamos em algum lugar, quando na verdade o lugar é que não se encaixa em nós, mas mesmo assim vamos nos transformando em algo amorfo, despersonalizado, burocratizado, impessoal, apenas para se sentir pertencido a alguma coisa. É quase hilária essa tensão psico-filosófica entre o que somos, nossa imperfeição inerente, e essa racionalidade que se formou em modelo global.
Mas Rogério ainda estava desempregado.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Primeiro Publicação!

Primeira publicação do meu novo blog "Decadência Verbal". Chega de apresentação, vamos ao primeiro texto!

Estranheza (Ricardo Braga)


João se levanta sempre às sete e meia, toma seu café, com dois dedos de leite e uma colher cheia de açúcar, come duas fatias de pão de forma com pouca manteiga. Um banho rápido, sapatos bem lustrados - pretos - e a camisa para dentro da calça. Às oito e meia sai de casa para o trabalho.
João mora em um bairro comum, com algumas árvores e muitos prédios, o verde se torna pálido no cinza empoeirado, um tom clássico e urbano. Porém o conjunto não é surpreendente após alguns dias. O tempo nos leva a aceitar a estranheza que imerge do cotidiano com um leve ar de cômico.
Mas nesta ensolarada terça-feira havia algo de diferente entre as árvores. Uma senhora de casaco de pele e chapéu aveludado, ambos de um vermelho berrante, muito velhos e surrados; a bainha era encardida e na roupa tinham diversos rasgos e buracos. Usava uma longa saia preta, junto de uma camisa com mangas compridas e da mesma cor. Para completar o rosto totalmente branco pelo pó-de-arroz. Uma figura inusitada e que não parecia sentir o calor de Janeiro.
Primeiramente o que chamou a atenção de João foi o comentário sobre a "velha maluca do outro lado da rua". João estranhou e olhou com rapidez para ela. Se perguntava como ela aguentava o calor e aonde teria arranjado aquelas roupas. Deixou para lá pois quase esqueceu de fazer sinal para o ônibus.
De noite quando voltou do trabalho ela ainda estava lá, sentada, como se não tivesse se movido, como se nem existisse. Tentou reparar melhor nela, mas o horário, a falta de claridade e, no fundo, a falta de interesse verdadeiro pelo que não lhe exercia influência.
Às oito e meia da manhã ela continuava ali, haveria dormido ali, ou voltara para lá de manhã? As mesmas roupas estranhas e quentes, o mesmo ar de inércia e solidão. Dessa vez olhou com calma para ela, o rosto magro e com rugas evidenciava a idade, o corpo magro e as roupas sujas caracterizavam a pobreza. Percebeu que ela olhava para ele com um ar de piedade. Ele sentiu culpa, desviou o olhar e foi trabalhar.
Na volta tentava desviar o olhar fixo dela, mas não conseguiu evitar a surpresa quando ela lhe disse: "Boa noite". Virou assustado, cruzaram um olhar de estranheza, mas como se a partir d'ali se conhecessem.
Entrou no prédio pensando em como tudo aquilo era estranho, porém no dia seguinte lhe deu 'Bom dia", da mesma forma como fazia sinal para o ônibus todos os dias.