sábado, 25 de fevereiro de 2012

O Emprego

  Nessa segunda postagem estou tentando manter a linha de  textos novos. Escrevi esse ontem, acho que ficou melhor que o anterior, porém está longo, espero que tenham paciência para ler e que gostem, quem quiser pode comentar livremente.

O Emprego  (Ricardo José)


Alguém devia ter falado muito bem de Pedro, pois naquela tediosa manhã de segunda ele havia sido empregado.
Pedro era um rapaz de vinte e poucos anos, magro e alto. Cabelo preto e um pouco crespo. As feições do rosto finas e um nariz em dissonância, levemente grande. Com uma inteligência mediana, mas supervalorizada em meio ao silêncio de sua voz e paciência de seus gestos. Uma personalidade quase preguiçosa, uma calmaria que beira a inércia e falta de vontade frente às responsabilidades inúteis para alguém de vinte e poucos anos.
Pedro era um estudante típico, tinha amor pelo que fazia ao mesmo tempo que tinha raiva pelo que ainda não sabia, com um estranho desejo de pôr em prática tudo aquilo que aprendera, porém quando? Bem, pelo que tudo indicava seria naquela prometida segunda-feira. Vestiu sua melhor roupa, uma calça jeans escura, uma camisa social de cor clara (mas não tanto) e um tênis baixo e escuro. As cores se iluminavam aos seus olhos e ele todo exalava confiança. Já começava a ver um futuro promissor.
Durante o caminho apenas pensava no que diria quando chegasse lá, queria passar uma boa impressão obviamente, mas não queria parecer prepotente. Sorria com satisfação dentro do ônibus a caminho do trabalho - dizia assim, com todas as palavras - todas aquelas proposições filosóficas que aprendera na faculdade, aquele pensamente crítico e aquela desejosa insatisfação. A sua irracionalidade brotava em êxtase de todo o seu corpo. Ele achava estranho chamar-se assim, 'irracional', mas a satisfação era enorme, pensar que ele mesmo não fazia sentido, eram engraçadas as palavras daquele francês, eram de um significado, de uma vivacidade!
Pois que já no elevador era tratado por senhor, e o seu ego inflava, não havia motivo para se segurar, estava nos céus. O diretor geral olhou para ele, sentia que eram quase iguais, se não fosse a idade.
- Bem vindo, Pedro. Seu currículo é muito bom para alguém tão novo. Estou impressionado - o diretor falou, ainda sentado, sem muita vontade.
- Muito obrigado, senhor! - Pedro não conseguia conter a animação. Estou muito feliz de poder trabalhar aqui.
- Que bom, pois aqui você vai fazer muito disso - a animação de Pedro não lhe permitiu ver a ironia. Vamos, a secretária vai te mostrar a sua mesa e te dar o seu primeiro trabalho. Quando terminar traga-o aqui, quero ver o que você sabe mesmo.
A secretária, uma moça um pouco mais velha que ele, de estatura baixa, tinha um sorriso convidativo, mas olhos comoventes e envelhecidos, cansados. Mostrou-lhe o seu cubículo e deu umas pastas para Pedro.
- Esse é o seu computador, acho que está tudo aí - disse ela. Você terá que analisar os dados dessas pessoas e ordená-las em 'potenciais', 'possíveis' e 'arriscados'. Apenas queremos saber se vale a pena ter eles como clientes - ela esperou a confirmação de Pedro e foi embora.
As mãos de Pedro quase tremiam de animação. Ele abriu a primeira pasta e leu:

'Ricardo J. B. Antunes. B-25.240.120.50-U
Situação: Desempregado.
Valor: R$ 3.000,00.
Casado: Sim. Filhos: Sim.
Grau: C- (80%) Alto risco.'

Pedro releu umas duas vezes. Era apenas aquilo? Alguns dados 'pessoais', o valor desejado, um número e só? Aquilo não podia estar certo. Com certeza ele teria algum motivo para estar ali, talvez precisasse com urgência daquele dinheiro, e aquela quantidade nem era tão alta assim. Com a taxa de juros, em dois anos eles ganhariam mais da metade da quantia, sem nem terem sido reembolsados! Não era possível, nem uma foto, nem uma entrevista havia sido feita. 'Talvez seja apenas esse, afinal de contas o risco é de 80%...' pensava Pedro. Seguiu adiante com o trabalho. Na segunda pasta a mesma surpresa, um nome abreviado, uma identificação numérica, uns valores e o risco tomando a maior parte do espaço. Continuou o trabalho um pouco incomodado. Após uma hora voltou para o diretor.
- Com licença, Sr. Carlos, terminei o serviço, aqui...
- Ora, finalmente, nos próximos tente ser mais rápido - cortou o diretor com uma voz grave mas com um ar de jocosa paternidade. Isso aqui é bem fácil, é só olhar e classificar, sem mistério algum. Qualquer dúvida é só consultar o número no sistema.
- Sr. Carlos, eu tive uma pequena dúvida apenas.
- Diga, diga - o diretor ainda olhava as pastas.
- Por que há tão poucos dados sobre os clientes, eu nem sequer sei quem são. Nem uma foto tem - falou ainda receoso.
- Mas você não precisa de mais nada, isso é gastar tempo a toa, papel, tinta e dinheiro. Os números estão aí, o computador já calcula o risco de todos os clientes, nós botamos todas as variáveis importantes no sistema e ele contabiliza tudo. Pronto, sem erro, sem perda de tempo.
- Mas e o contato humano? Quero dizer, é claro, precisamos cortar gastos sempre, entendo isso mas, essa decisão pode mudar a vida de uma pessoa - Pedro se sentia um pouco mal de falar tudo aquilo ainda no primeiro dia.
- Ah, garoto, você ainda tem muito o que aprender aqui, mas está indo no caminho certo. O computador não erra, os cálculos não erram nunca. Por ser essa decisão tão importante assim é que deixamos a máquina fazê-la. Confie nela e no nosso raciocínio e você verá como as coisas são simples. Todos esses dados têm um sentido e são cruciais para a decisão. Você pode pensar 'poxa, mas esse aqui está desempregado, tem família, podíamos dar o dinheiro a ele'. É claro que nós podíamos, mas quem garante que ele nos pagará de volta, ein? Se ele não paga, temos que processá-lo, e lá se vai dinheiro com advogado e tudo o mais. Olha a perda de tempo e dinheiro, até mesmo para o pobre coitado. É mais fácil economizar isso tudo. Não se questione tanto, confie no raciocínio.
- O.K., Sr. O Sr. tem razão, é o melhor - Pedro disse um pouco conflitante consigo mesmo, mas o diretor estava naquele cargo a um bom tempo e era bem reconhecido, ele com certeza sabia o que fazia.
Sentado nos seus 2x2 metros de espaço Pedro ia aos poucos pensando em como haviam sido bobas as suas perguntas, resolveu prestar mais atenção ao que fazia e, na dúvida, consultar o computador e os cálculos, sempre.
Enquanto isso, Rogério, melhor amigo de Pedro na faculdade ia pensando em como era engraçada aquela esquizofrenia em que vivíamos, em plena aceitação do que sempre foi, mesmo que seja contra o que pensávamos. Por que sempre aceitamos tudo como se fosse normal, natural? E pior, vamos cada vez mais soterrando nossos pensamentos numa culpa, que nós mesmo criamos - ora, veja bem - por não pensarmos igual ao que - dizem - deveríamos pensar. Achamos que não nos encaixamos em algum lugar, quando na verdade o lugar é que não se encaixa em nós, mas mesmo assim vamos nos transformando em algo amorfo, despersonalizado, burocratizado, impessoal, apenas para se sentir pertencido a alguma coisa. É quase hilária essa tensão psico-filosófica entre o que somos, nossa imperfeição inerente, e essa racionalidade que se formou em modelo global.
Mas Rogério ainda estava desempregado.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Primeiro Publicação!

Primeira publicação do meu novo blog "Decadência Verbal". Chega de apresentação, vamos ao primeiro texto!

Estranheza (Ricardo Braga)


João se levanta sempre às sete e meia, toma seu café, com dois dedos de leite e uma colher cheia de açúcar, come duas fatias de pão de forma com pouca manteiga. Um banho rápido, sapatos bem lustrados - pretos - e a camisa para dentro da calça. Às oito e meia sai de casa para o trabalho.
João mora em um bairro comum, com algumas árvores e muitos prédios, o verde se torna pálido no cinza empoeirado, um tom clássico e urbano. Porém o conjunto não é surpreendente após alguns dias. O tempo nos leva a aceitar a estranheza que imerge do cotidiano com um leve ar de cômico.
Mas nesta ensolarada terça-feira havia algo de diferente entre as árvores. Uma senhora de casaco de pele e chapéu aveludado, ambos de um vermelho berrante, muito velhos e surrados; a bainha era encardida e na roupa tinham diversos rasgos e buracos. Usava uma longa saia preta, junto de uma camisa com mangas compridas e da mesma cor. Para completar o rosto totalmente branco pelo pó-de-arroz. Uma figura inusitada e que não parecia sentir o calor de Janeiro.
Primeiramente o que chamou a atenção de João foi o comentário sobre a "velha maluca do outro lado da rua". João estranhou e olhou com rapidez para ela. Se perguntava como ela aguentava o calor e aonde teria arranjado aquelas roupas. Deixou para lá pois quase esqueceu de fazer sinal para o ônibus.
De noite quando voltou do trabalho ela ainda estava lá, sentada, como se não tivesse se movido, como se nem existisse. Tentou reparar melhor nela, mas o horário, a falta de claridade e, no fundo, a falta de interesse verdadeiro pelo que não lhe exercia influência.
Às oito e meia da manhã ela continuava ali, haveria dormido ali, ou voltara para lá de manhã? As mesmas roupas estranhas e quentes, o mesmo ar de inércia e solidão. Dessa vez olhou com calma para ela, o rosto magro e com rugas evidenciava a idade, o corpo magro e as roupas sujas caracterizavam a pobreza. Percebeu que ela olhava para ele com um ar de piedade. Ele sentiu culpa, desviou o olhar e foi trabalhar.
Na volta tentava desviar o olhar fixo dela, mas não conseguiu evitar a surpresa quando ela lhe disse: "Boa noite". Virou assustado, cruzaram um olhar de estranheza, mas como se a partir d'ali se conhecessem.
Entrou no prédio pensando em como tudo aquilo era estranho, porém no dia seguinte lhe deu 'Bom dia", da mesma forma como fazia sinal para o ônibus todos os dias.