sexta-feira, 7 de março de 2014

Como era gostoso o meu baço

    São 13:40, estou terminando de almoçar: a última garfada de um delicioso baço carioca, bem preparado, talvez apenas com gordura e agrotóxico demais. Enquanto mastigo olho para uns pés, meus pés muito provavelmente, mas não posso ter certeza, apesar de não me lembrar de ninguém me visitando hoje à tarde. O prato se move sozinho para a pia, em algum momento será lavado. Apesar de não me sentir completamente satisfeito, apesar de um pouco incomodado pela surpresa de um sabor tão inusitadamente bom, fico olhando para a cozinha, bagunçada e imunda. Não havia braço o suficiente para limpar e cozinhar ao mesmo tempo. Na verdade não houve braço algum.
    Mais ou menos uma hora antes eu me dirigi à cozinha para preparar qualquer coisa rápida. Passeando com o olhar desolado pela despensa vazia encontro, com a glória única dos que tem a preguiça e a necessidade de preparar o próprio almoço, um pacote de macarrão ninho pela metade. Satisfeito pego uma panela e ponho a água para esquentar. Talvez tenha uns hambúrgueres no congelador, eu penso. Sorrio e xingo sem pudores pela felicidade indescritível.
Três hambúrgueres congelados que restaram da última vez que meus amigos vieram tomar uma cerveja, comer besteira e assistir um filme trash, provavelmente do início dos anos 80. Abro a geladeira e pego uma cerveja, o momento merece. Com a nuca eu olho, ou melhor, sinto uma movimentação. Achando que poderia ser algo com o fogão me viro rápido, apenas à tempo de ver uma das minhas frigideiras me acertar no meio da cabeça. Antes de desacordar tento colocar a cerveja na mesa. Em vão.
    Acordo com o característico silvar de carne cozinhando na própria gordura. Penso imediatamente em bacon e na minha geladeira vazia que não tinha bacon. Com a visão embaçada tento coçar os olhos. Impossível, não há braços. Não, não estava amarrado, descartava a possibilidade de sequestro, isso seria surreal demais. Eu apenas não tinha meus braços e sentia a ausência deles, não uma tristeza, mas como nos segundos que antecedem o formigamento de um membro, em que este se parece mais gelado que o resto do corpo.
    Assim me sentia, em um estado pré-formigamento, com a plena consciência de que eu tenho um corpo e de que há uma vida nele que não me compete totalmente. E no entanto meu corpo estava na bancada. Não inteiro, claro, a bancada era pequena para isso. O corpo fatiado e destrinchado e estripado, devidamente limpo, os órgãos separados, os dejetos num saco de lixo separado, os pés gentilmente alocados do meu lado esquerdo. A confusão de cheiros já existia antes, mas acho que olhar intensificou o olfato. Não sei, o cheiro parecia se prender ao buço e dali ficar perpetuamente em contato com as narinas, mas como não me era possível embrulhar o estômago mais do que este já havia sido ensacado, não me senti mal, os aromas pareciam normais. A cerveja que derramara já havia esquentado, e este era o pior cheiro da cozinha, mas era facilmente sobreposto pela carne - minha carne - que fritava em si - em mim - mesma.
    As facas se moviam sozinhas, precisas e confiantes em sua própria habilidade. As panelas antes me pareciam ser apenas objetos inertes, mas se moviam em torno do fogo, dançando sensualmente, num coquetismo alimentar (quase oferecendo a comida ao fogo, mas retornando à sua posição original satisfeita com um incendiário beijo). Até o fogão, este que nunca havia se manifestado de forma independente para mim estava abaixando o fogo por vontade própria. Reconheci de imediato a frigideira que havia me nocauteado. Estava repousada sobre a bancada, profundamente satisfeita de ter cumprido a sua missão de me abater, certamente dormiria no sereno após ser devidamente limpa, pois com certeza a pia também estava envolvida. Pergunto-me se a geladeira, eterna companheira, também estaria envolvida, não sei se por medo ou inocência prefiro acreditar que não.
    É curioso que não tenha sentido nenhuma forma de dor ao ver alguns membros serem fatiados, cozinhados, fritos e descartados. O que senti, de fato, foi desejo por ver tanta comida, afinal eu ainda estava com fome e era um verdadeiro banquete, com verduras e folhas diversas e, se meus olhos não me enganaram, até uma manga fatiada na salada - e eu que nem me lembrava desta manga. Tudo era único. O coração, musculoso demais, parecia engrossar e dar charme à uma panela de sopa de legumes. Os rins não foram usados e o fígado apenas parcialmente, provavelmente já estava meio gasto. Não vi os pulmões. O estômago, o baço e o pâncreas estavam sendo cozinhados e eram com toda a certeza os mais cheirosos. As costelas estavam no forno, minha boca salivava - sim, salivava, ainda dava para fazer isso mesmo apenas com a cabeça - à espera de descobrir o molho que tinha sido usado. Um belo bife, provavelmente da perna, fritava em outra frigideira - ainda não sei que carne era aquela que silvava tão docemente. Pênis e testículos estavam inertes no canto, junto de mais alguns legumes a serem postos na sopa. Talvez me perguntem se não senti falta de nenhum desses órgãos ou membros (os braços por algum motivos estavam inteiramente descartados ao lado da porta para serem levados ao lixo do prédio), diria que não, eles estavam todos ali e eu tinha agora mais consciência de todos eles do que tivera em qualquer outro momento. Dor? Nenhuma, pelo contrário, sentia um desejo enorme de me ter em mim mesmo, de sorver o sangue que ainda estava nas carnes e no molho da sopa, de sentir-me circulando, saborear meu próprio estômago. Acho que se pudesse teria comido minha própria língua, sentindo o sabor da percepção dos sabores. Seria algo como o azul profundamente claro, encerrado em si mesmo, infinito por lembrar o horizonte.
    Enfim, tudo pronto e o banquete começara. Achei que não daria conta, pois apesar da fome descomunal a quantidade de comida era gigantesca! Mas parando para pensar, como poderia ficar de estômago cheio se ele estava ali, fatiado num delicioso cozido com feijão branco (neste momento eu já concluíra que os utensílios de cozinha haviam ido no supermercado, ou tinham escondido tudo de mim momentos ou dias antes, sabe-se lá se este já era um plano antigo. Acho que perguntar o porquê é desnecessário). Admito que a costela me decepcionou, era magra demais, agarrada demais ao osso. A sopa estava boa, gosto de sopa grossa e sei que a minha panela sabia disso e cuidou para que assim fosse. O bife, certamente da coxa, estava queimado e eu desconfio do fogão - sempre desconfiamos do fogão. A carne que assobiava algo muito parecido com o som do silêncio, e talvez fosse o som do corpo enquanto organismo inteiro - pois há de ser como numa orquestra, cada órgão sozinho é pouco para a sinfonia composta por todos eles - era deliciosa e estava perfeita: crocante por fora e macia por dentro, sabor único, flertando entre o doce e o cítrico - exato, como?! -, sal na medida certa e com um molho agridoce. Mas o baço... o baço era o sangue inteiro que corria em mim e que eu ainda sentia colado na bancada, sujo nas facas, agarrado às carnes que eu comia e não sabia para aonde iam. Eu era, de fato, todo o meu corpo, experimentava uma sensação de ser eu mesmo, em mim mesmo. Experimentava a sensação de passar por dentro do meu corpo, apenas por comer(-me).
    Não sei se foi impressão, mas toda a cozinha parecia olhar satisfeita a minha emoção e completude. Creio que por merecimento me deram uma cerveja, gelada e leve - me parece mais provável que fosse iniciativa da geladeira, sempre simpática e conhecedora dos anseios. Falta pouco para o prato acabar e me sinto contente, extasiado com a refeição, pensando em contar para os amigos, mas triste por não ter anotado as medidas.
    São 13:40, estou terminando de almoçar: a última garfada de um delicioso baço carioca, bem preparado, talvez apenas com gordura e agrotóxico demais. Enquanto mastigo olho para uns pés, meus pés muito provavelmente, mas não posso ter certeza, apesar de não me lembrar de ninguém me visitando hoje à tarde.

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